segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

História

Essa história é baseada em fatos reais.
Mas não quer dizer que não seja meio fictícia, meio imaginária.
Talvez seja fruto das expectativas de alguém (eu) para um dia normal.


Florianópolis, 13 de dezembro de 2010.

Tivera insônia e acordei com um sono terrível. Voltei a dormir. Quando, com muito esforço, me levantei de novo, peguei meu relógio de pulso na cabeceira e vi que haviam passado apenas 10 minutos. Fiquei pensando se iria ou não à aula, mas me lembrei da promessa que me fizera na noite anterior e levantei da cama.

Meus olhos custaram a abrir totalmente, e fui ligando as luzes lentamente para não machucar as pupilas. Arrumei-me com tranquilidade, o mesmo ritual de sempre: fazer xixi, escovar os dentes, pentear o cabelo, prender o cabelo, lavar o rosto, colocar as lentes, me vestir, me maquiar e rezar. Coloquei a calça que minha mãe me dera ( a calça era dela) pela primeira vez e ela se ajustou perfeitamente bem. Há muito tempo, desde que engordei 10 quilos, não me sentia bem com uma calça. Não precisei nem colocar o sinto para evitar o indesejável cofrinho. Sempre checo se engordei ou emagreci, e não tive certeza desta vez. Coloquei um par de tênis, depois outro, peguei minha mochila e corri para baixo antes que minha mãe fosse para a cozinha – eu tinha um segredo.

Larguei minha mochila no tapete, peguei minha garrafinha d'água, despejei toda a água na pia e abri o armário de bebidas do meu pai. Na verdade, o armário de bebidas é o mesmo armário dos copos; a prateleira das bebidas é a mais àcima, e morro de medo de que, numa dessas visitas furtivas ao “santuário”, eu acabe me atrapalhando ao pegar uma garrafa e deixe-a se quebrar no chão. “Vamos ver, o que vai ser hoje?”. Peguei a mais nova garrafa da prateleira – um “Johnnie Walker” - e enchi o fundo da minha garrafinha até a primeira listra com o líquido amarelado. Guardei o whisky e parti para a geladeira, onde sabia que havia uma garrafa de vinho, que misturei ao whisky até tingir todo o líquido de um roxo escuro. E pra que esperar? Engoli todo o conteúdo ali mesmo, antes que ouvisse os passos da minha mãe descendo a escada. Odeio gosto de bebida. Nunca consegui saboreá-la. Chego a me perguntar por que diabos as pessoas gostam tanto de beber. No último gole, já estava fazendo careta. Enxaguei às pressas a garrafa d'água na pia e novamente a enchi de água, para tomar depois.

Minha mãe chegou logo depois e perguntou se eu já havia tomado café. Meio confusa, menti que havia comido bolo e ela me pediu para ajudá-la a levar o lixo pra fora. A ideia era beber a “preciosa mistura” em jejum, pois assim faria efeito mais rápido. Dificilmente eu saio de casa sem comer alguma coisa mas, dessa vez, a vontade de comer havia sumido – acho que meu estômago não aguentaria um pedacinho de bolo que fosse.

Minha mãe me levou de carro. Só o Terceirão está em aulas, então senti uma certa estranheza ao me deparar com a entrada do colégio, outrora repleta de carros, pais e crianças saltitantes e agora, tão vazia e sem vida.

Mas logo percebi que nem tudo era triste – lá estava ele, sentado no banco de frente para a rua, esperando que alguém – quem sabe eu? - aparecesse. Era o D., o menino com quem eu havia passado a maior parte da festa que teve depois da formatura. Eu, completamente bêbada e já fora de mim, e ele, que bebera tanto quanto eu – ou até mais – mas era forte o bastante para não ficar no meu estado.

Fiquei me perguntando se ele se lembrava de tudo o que havia acontecido, de tudo o que havíamos passado juntos na primeira noite em que nos conhecemos de verdade. Engraçado, passamos um ano inteiro estudando na mesma sala e só fomos nos conhecer na noite da formatura. Deve ser porque eu não estava bêbada nos outros dias.

É como o personagem Raj, do seriado americano “The Big Bang Theory”: só consigo falar com indivíduos do sexo oposto se estiver bêbada. A diferença é que comigo as coisas não acontecem de um jeito mágico, como acontece com o Raj, que apenas num gole consegue se tornar autoconfiante. Para dar certo comigo, só bebendo “um pouco a mais” do que as recomendações diárias para o consumo de álcool (uma taça de vinho ou um copinho, daqueles de bar, de whisky por dia).

A dose que tomei nesse dia não foi o suficiente para me deixar desinibida, mas bastou para tirar um pouco a sensação de desconforto de me sentir imaginariamente “vigiada” e “ridicularizada” por todos ao meu redor, sem falar que é essa também, geralmente, a quantidade que tomo antes de ir para o basquete.

Enfim, acho que ele se lembrava daquela noite sim, porque logo que me viu me deu um sorriso, se levantou e veio me dar um beijo no rosto e um “oi”. Senti que ele ia falar mais alguma coisa, mas foi cortado pelo professor de biologia que chegou por trás de nós na mesma hora, dando bom dia com aquele seu sorriso perpétuo e se posicionando ao lado do D. para juntos seguirmos a nossa caminhada até o quarto andar do prédio.

No trajeto, o “T.” (como é chamado o professor), com o seu tom travesso de sempre, perguntou se o D. ainda estava de ressaca da festa de formatura, e o danado do garoto me entregou dizendo “Eu não, mas não sei a A.!”. A “bebedeira” matinal não me impediu de corar na hora. O “T.” olhou pra mim e, rindo como sempre, exclamou: “O quê?! A A. foi na festa?!Mas não era você a maior santinha, a única que sempre recusava os nossos convites para as festas e as viagens? E ainda por cima bebeu...!!”. Sem muito o que responder comecei a rir e a cobrir o rosto com as mãos, como sempre faço quando sou o motivo da graça ou o assunto da conversa de alguém. E ainda estávamos no segundo andar! Foi aí que o D. fez um gesto apontando para mim e olhou pro “T.”: “Olha lá 'T.', deixou a garota vermelha!”. E novamente o professor inclinou a cabeça para mim, só que dessa vez com um ar um pouco menos brincalhão: “Mas... Você bebeu mesmo A.?”. Ele não podia acreditar que uma CDF como eu poderia beber. Acho que ninguém acreditaria que qualquer CDF pudesse beber. Nós chegávamos ao quarto andar quando eu disse um “sim” que encerrou a questão.

Tentei abrir a porta do Terceirão mas estava trancada. Tudo estava numa penumbra, éramos as únicas pessoas no colégio além do cara da guarita e a coordenadora, que estava no andar de cima.

O professor também resolveu subir para a sala dos professores e ficamos lá, só eu e o D., um tanto sem-graças. “É engraçado como sempre bebo álcool com a intenção de me livrar da sociofobia pelo menos momentaneamente, mas tudo o que consigo é sentir tontura no basquete e sono na aula”, pensei. Sentia um leve torpor, mas nada que me permitisse olhar para o menino ao meu lado e dizer alguma coisa que fizesse sentido. Aquela noite que passamos juntos também contribuía para aumentar a minha tensão, agora que eu havia arruinado toda uma reputação construída e mantida cuidadosamente ao longo do ano. Sim, o “T.” tinha razão: “mas eu não era a maior santinha?!”. Não era eu que me dizia todos os dias, naqueles dois anos e meio que ficara afastada da vida social e – principalmente – do sexo oposto, que as pessoas que quisessem ser minhas amigas ou namorados o fariam por gostar de mim do jeito que sou, desse jeito soturno e acanhado que tenho? Por que beber então?

A essa altura dos meus pensamentos, o tal garoto ao meu lado, como quem não queria nada, esticou os braços espreguiçando-se e olhou para algum lugar na parede à nossa frente: “aaaaaaaaiai, não tava nada a fim de vir à aula hoje”. Não querendo discordar, falei: “pois é, eu também não tô muito a fim.” Nós sorrimos um para o outro. Já eram 7h20min, e a aula começava às 7h30min, e nenhum aluno, a não ser nós, havia chegado. Nem o professor que daria a primeira aula nós víramos chegando. Só o inspetor que ficaria no nosso andar acabava de chegar para abrir a porta da sala. “Caraca, vai ser mó chato, não tem ninguém”, ele disse. “É né...”, eu disse, como sempre, sem saber o que responder e meio lenta sob o efeito calmante da bebida.

As aulas de revisão para o vestibular eram abertas à comunidade, então alguns jovens desconhecidos começavam a chegar. O D. deu mais uma bocejada e, de repente, disse: “Pô A., acho que eu vou vazar... Antes que comece!” E eu, por impulso, fui na onda dele: “Ah, acho que vou também então” “O quê, você matando aula? Hahaha! Bora então?” Eu disse “vamos” e começamos a descer as escadas com uma pressa instintiva, passando por vários alunos que chegavam naquela hora, alguns conhecidos, outros não. Os que não nos conheciam nem ligavam, os que nos conheciam mas não haviam ido à última festa nos olhavam com estranheza por nos verem juntos, e os que nos conheciam e haviam ido à última festa nos sorriam com malícia e alguns – principalmente os amigos dele – até soltavam algumas piadas. Passamos inclusive pelo professor de física, que apenas nos olhou e não disse nada. Estava acostumado à evasão de alunos na sua aula.

Chegamos ao portão de entrada no térreo e pedimos para o cara da guarita abri-lo. Como sempre, ele abriu sem problemas e sem nada perguntar. Além de um “não liga pra eles” que o D. disse diante da zuação dos amigos na escadaria, não havíamos falado quase nada durante a nossa cruzada com destino à liberdade. Agora, mais do que nunca, eu sentia os efeitos do álcool correndo pelas minhas veias, entorpecendo-me, me dando leves vertigens e me tirando um pouco da sensibilidade que tinha do mundo exterior. Começamos a andar sem rumo e eu dei risadinhas. Ele me perguntou como havia sido a minha primeira experiência com a ressaca no domingo de manhã após a festa. Perguntou se eu havia vomitado e se senti muita dor de cabeça. Não vomitei porque não comera nada desde o café da manhã naquele dia, e sim, senti muita dor de cabeça. Contei que meu pai riu quando soube que eu havia bebido feito louca, era coisa nova pra ele. Minha mãe também não brigou comigo, mas ficou perguntando quem me havia introduzido ao mundo “das drogas”, nos seus termos.

Entramos na minha rua, já nos sentíamos mais à vontade um com o outro e falávamos sem parar. Sentamos no banco da praça e ficamos lá até quase as 10 da manhã, falando de bebedeiras da vida (dele), nossos futuros e o que cada um já fazia da sua vida. Na verdade, nós não nos conhecíamos ainda, e percebemos que éramos muito diferentes um do outro. Bem, isso era óbvio desde o começo do ano, com ele sentado no clássico “fundão” com os amigos bagunceiros e eu sentada num canto da primeira fileira, muito empenhada na minha tarefa de evitar qualquer contato social que não com os professores, e olhe lá.

Para mim a coisa mais divertida é conhecer gente com quem não costumamos lidar. Gente que não é do nosso “tipo”. O D. é assim, e acho que ele gostou de me conhecer também, apesar de estarmos bêbados no nosso primeiro contato, o que não nos diferenciava muito, mas foi essencial para uma aproximação inicial, por mais estranho que isso pareça.



ALNS

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